Embriões humanos ‘sintéticos’: por que a ciência está interessada neles?
Cientistas dos EUA e do Reino Unido anunciaram a criação de modelos feitos em laboratório a partir de células-tronco, sem óvulos, espermatozoides e fertilização; objetivo é estudar as primeiras fases da vida humana
O anúncio de que cientistas dos Estados Unidos e do Reino Unido conseguiram criar modelos de embrião humano em laboratório – abre uma janela extraordinária para as primeiras semanas embrionárias e levanta questões éticas e legais inéditas sobre a criação da vida.
Criadas a partir de células-tronco pluripotentes humanas (capazes de se desenvolverem em qualquer tecido do organismo), sem o uso de óvulos, espermatozoides ou mesmo de fertilização, as estruturas sintéticas replicam algumas das células e estruturas que tipicamente aparecem entre a terceira e a quarta semana de gravidez.
Elas foram especialmente planejadas para não se desenvolver além desse estágio, o que significa dizer que elas não têm o potencial de se transformar em um feto humano. Essa característica, argumentam os cientistas responsáveis, faz com que os experimentos não sejam considerados eticamente controversos.
“Eu gostaria de enfatizar que essas estruturas não são embriões de verdade e que nós não estamos tentando criar embriões”, frisou Jitesh Neupane, do Instituto Gurdon, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, ao apresentar o seu trabalho, no último sábado, no encontro anual da Sociedade Internacional de Pesquisa com Células-Tronco. “Elas são apenas modelos que podem ser usados para estudarmos aspectos específicos do desenvolvimento humano”.
Ainda assim, disse Neupane, poder ver as células cardíacas pulsantes sob o microscópio foi uma experiência impactante. “Quando eu vi (o batimento cardíaco) pela primeira vez, fiquei apavorado”, contou Neupane, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. “Tive que olhar outra vez e mais uma vez. Foi muito impressionante. As pessoas realmente ficam emotivas quando veem um batimento cardíaco”.
Dias antes, na mesma conferência, a professora Magdalena Zernicka-Goetz, da Universidade de Cambridge e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech, na sigla em inglês), já havia revelado um modelo de embrião humano sintético de pouco mais de 14 dias.
De acordo com diretrizes da Sociedade Internacional de Pesquisas com Células-Tronco, aceitas na grande maioria dos países, inclusive no Brasil, só é possível cultivar embriões humanos em laboratório por até 14 dias, que marca o início de uma fase chamada de gastrulação, em que são formados o sistema nervoso central e outras estruturas importantes.
Depois desse período, os cientistas só conseguem voltar a acompanhar o desenvolvimento embrionário bem mais à frente, por meio de exames de ultrassonografia de grávidas. Por isso, essa fase é chamada pelos cientistas de “caixa-preta”, porque ninguém sabe exatamente o que acontece. Essas estruturas podem ajudar a entender o impacto de problemas genéticos e as causas biológicas de abortos recorrentes.
Eles também podem ser usados para testar o efeito de determinadas drogas em embriões e estudar a relação entre a diabetes gestacional e problemas cardíacos em bebês. Eventualmente, elas poderiam ser usadas até mesmo na medicina regenerativa, criando tecidos para pacientes que esperam por doação de órgãos.
“É um avanço realmente muito importante porque até hoje não temos como estudar o embrião depois da segunda semana após a fecundação e, a partir de agora, poderemos estudar essa fase, o que abre mil oportunidades de estudos”, afirmou o geneticista Salmo Raskin, diretor-científico do Departamento de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria. “Vale lembrar que um terço dos embriões fecundados não vão adiante por conta de alterações cromossômicas; se pudermos estudar o momento em que essas alterações ocorrem, conseguiremos entender melhor o fenômeno e reduzir a taxa de aborto espontânea”.
Especialista em reprodução humana do Hospital Sírio-Libanês, Silvana Chedid concorda com o colega. “Nos laboratórios de reprodução humana, cultivamos embriões em laboratório por, no máximo, sete dias, para então ser recolocado dentro do útero”, explicou a médica. “Então existe realmente esse período sobre o qual pouco se sabe sobre o desenvolvimento dos embriões. Esses modelos podem nos ajudar a entender, por exemplo, os mecanismos de formação da placenta, a explicar os abortos de repetição, a criar tratamentos para infertilidade”.
Salmo Raskin vê também uma importante oportunidade de estudo de questões genéticas relacionadas ao desenvolvimento embrionário. “Poderemos entender situações que ocorrem no início do desenvolvimento embrionário que atualmente não conseguimos estudar”, contou o geneticista. “Porque, depois das duas semanas, só conseguimos voltar a estudar quando a gestação já está por volta da 10ª semana, via ecografia, e o embrião nem é mais embrião, já é um feto”.
O modelo descrito pelo grupo de Neupane é similar a um embrião de 18 a 21 dias e replica estruturas um pouco mais avançadas, como células cardíacas responsáveis pelo batimento e células sanguíneas, que só aparecem na quarta semana do desenvolvimento do embrião.
As estruturas foram cultivadas em laboratório a partir de uma cultura de células-tronco embrionárias e, em seguida, transferidas para uma espécie de garrafa rotatória, que funciona como um útero artificial.
Propositalmente, as estruturas não apresentam as primeiras células responsáveis pela formação do sistema nervoso central, nem aquelas necessárias para a formação da placenta e do saco gestacional, que são cruciais para o desenvolvimento para além dessa fase.
“No fim das contas, o modelo não tem todas as estruturas presentes em um embrião de quatro semanas”, explicou Neupane ao jornal britânico. “Por isso, seria complicado compará-lo diretamente a embriões in vivo”.
Especialista em biologia de célula-tronco e genética do Instituto Francis Crick, de Londres, Robin Lovell-Badge, que não está envolvido nos trabalhos, disse ao The Guardian que os embriões sintéticos não poderiam jamais formar uma criança. “O coração é apenas uma bomba. Eu sei que a gente pensa que ele bate em resposta a nossas emoções. Mas é no cérebro que nossas emoções se formam, não no coração”.
De acordo com as diretrizes internacionais, o modelo de embrião humano estaria na mesma categoria dos minicérebros e de tecidos cardíacos desenvolvidos em laboratório especialmente para pesquisa.
Não há nenhuma perspectiva a curto ou médio prazo de que embriões sintéticos possam ser usados clinicamente. Seria ilegal implantá-los no útero de uma mulher, por exemplo, e ainda não está totalmente claro se a estrutura continuaria se desenvolvendo para além do estágio embrionário.
Num trabalho anterior, assinado por cientistas chineses, no entanto, embriões sintéticos de macacos foram implantados no útero de uma fêmea e levaram a uma gestação, ainda que curta.
“A gravidez foi logo abortada espontaneamente, não foi em frente”, afirmou o geneticista Salmo Raskin. “Mas ocorreu uma gestação; ou seja, em algum momento o organismo da macaca interpretou que o modelo não era exatamente um modelo…. Precisamos ter cuidados éticos e morais, sem restringir a pesquisa, claro”.
Questões éticas e legais urgentes
Não há nenhuma indicação de que os grupos responsáveis pelos modelos de embrião humano pretendam fazer uma experiência semelhante, muito pelo contrário. Mas mesmo o uso dos modelos apenas como ferramenta para estudos levanta questões éticas e legais urgentes.
Por exemplo, até que fase do desenvolvimento embrionário um modelo poderia ir? Atualmente, não há nenhuma legislação limitando esse desenvolvimento. Como os modelos, teoricamente, não podem se desenvolver a ponto de se tornarem um ser vivo viável, eles não são legalmente considerados embriões humanos.
Outra: se o avanço no desenvolvimento das estruturas continuar, em que ponto ele deixaria de ser um modelo e se tornaria um embrião de verdade? Justamente por serem tão promissores para a ciência, os modelos podem acabar avançando mais rapidamente do que a nossa capacidade de determinar seus limites éticos.
“Como especialista em reprodução humana, sempre vou ver com bons olhos tais avanços, porque eles trazem a possibilidade de resolver muitos problemas. Veja que, em 1978, quando nasceu Luise Brown (o primeiro bebê de proveta), os dois pesquisadores responsáveis pelo avanço foram massacrados pela imprensa porque parecia que tinham feito algo antinatural, contra a Humanidade. E veja o leque de possibilidades que aquele experimento abriu para casais que têm dificuldade de engravidar”, afirmou Maria do Carmo de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Hoje, as pesquisas com células-tronco assustam as pessoas, mas, da mesma forma, são situações que podem impactar positivamente a vida humana, é uma boa notícia. Lógico que levanta questões éticas, como várias outras coisas, por isso deve haver limites e deve ser acompanhado pela sociedade, mas são avanços positivos”.
Os trabalhos ainda não foram publicados em revistas científicas, embora os cientistas tenham apresentado as experiências em versões pré-print e no seminário internacional.
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